A mudança paradigmática na saúde fundada pela psicanálise
3 de maio de 2021
Investigar o surgimento da psicanálise como campo científico pode nos fazer entender muito sobre a importância da psicologia nos cuidados com a saúde mental e nossas concepções sobre saúde. Ela não só trouxe uma nova leitura a respeito do funcionamento mental, mas nos mostrou que a saúde não se faz somente nos cuidados médicos, em uma visita eventual e sob os cuidados das ciências naturais. A psicanálise nos mostra que estamos imersos em ambientes e culturas potencialmente patológicos ou prejudiciais.
Para isso é necessário entendermos a interação que existe entre sujeito e ambiente, a busca por realização ou satisfação das pulsões orgânicas e as restrições existentes ou estabelecidas pelo meio em que se insere, obrigando os sujeitos a buscarem fontes de satisfação compatíveis com o que é aceito socialmente, caso contrário, surgirão sintomas e somatizações. Essa grande virada conceitual a respeito da humanidade nos provoca um questionamento que ainda parece ser nebuloso para a maioria das pessoas e até ausente em nossa formação educacional: Nossa cultura também necessita ser estudada de forma crítica de modo a evoluir, no sentido de permitir dialéticas entre as pulsões orgânicas, construção cultural e equilíbrios fisiológicos.
No fim, estabelecemos nossas vidas sobre um anteparo que oculta uma dinâmica inconsciente, onde residem as pulsões em seu estado puro ou primitivo, uma dimensão mental composta apenas de quantum energético procurando sua satisfação mais imediata, não simbolizada, sem o contexto social tensionado pelo “Princípio da Realidade”. A clínica é o espaço para se observar esse anteparo, a construção simbólica sobre a qual atribuímos valores e afetos conhecendo sua economia e valoração, o que afinal é feito de nossas pulsões? Até quando é suportável uma vida de busca pelas satisfações mais imediatas? Como Freud mesmo defendeu em “Totem e Tabu” das repressões necessárias ao desenvolvimento psíquico e sua eventual relação com o ambiente em que estamos inseridos.
Exemplos práticos na clínica e história da teoria psicanalítica
Para não ficar muito abstrato (o que realmente se torna quando falamos de conceitos complexos), vou trazer alguns exemplos práticos presentes na clínica atual ou na história do desenvolvimento da teoria psicanalítica. Freud, acreditando que todas as disfunções psíquicas já identificadas proviam das repressões sexuais, nomeou-as neuroses como referência diagnóstica em seus trabalhos clínicos, são sintomas e vestígios de que houvera no organismo algum tipo de resistência no fluxo orgânico das pulsões, ou seja, a busca natural pela satisfação dos desejos (que nos é tão preciosa, ao ponto de, por muito tempo, ser o que garante nossa sobrevivência) é submetida a restrições sem vias de satisfações alternativas. Isso implica numa obstrução de uma corrente que deveria ter o comportamento fluido como em rios ou correntes elétricas, passa por uma deformação inorgânica demandando a necessidade de reconstrução das vias de escoamento, ou o que posso chamar também de transformação subjetiva ou simbólica, uma reforma na estrutura mental a fim de produzir outra, capaz de conter o escoamento dessas pulsões que não sessam.
Síndrome do Ovário Policístico e a feminilidade
Atualmente percebemos a existência de tantas disfunções ditas incuráveis por profissionais de saúde, insistindo nos mesmos modelos diagnósticos com a esperança de que algum dia se compreenda sua cura, um exemplo muito presente no meu trabalho têm sido a SOP (Síndrome do Ovário Policístico), nele encontro um exemplo muito interessante para discorrer sobre a psicanálise. A síndrome é tida como incurável por ginecologistas ou endocrinologistas, seu método de tratamento consiste em fazer uma suplementação hormonal com a finalidade de suprir o que o corpo não produz, mas deveria, para manter as funções orgânicas funcionando de maneira equilibrada, fluida. Aqui caímos em várias problematizações e maneiras de se atenuar a problemática, recorrer a mudanças de hábitos alimentares e no cultivo de hábitos de cuidado com o corpo, como os exercícios físicos. Tudo isso, pode não parecer, mas já entra numa outra lógica de leitura diagnóstica e intervenção na saúde, muito mais parecida com o que proposições psicanalíticas, numa busca de produção de saúde em que se encontra equilíbrio entre pulsão, cultura e fisiologia.
Para concluir o que tenho a discorrer sobre esse exemplo específico da SOP, posso incluir também, e aí entramos mais no âmbito psicológico, a dimensão subjetiva e simbólica, que diz respeito também à feminilidade. É recorrente se procurarmos entrevistar mulheres que possuem esse quadro do ovário policístico, tão comum hoje em dia, a narrativa de, em seu histórico, ter vivenciado algum atrito e dificuldade na aceitação com sua sexualidade feminina, e não quero dizer que seja uma sexualidade depreciada, mas sim que nossa cultura delimita comportamentos e restringe possibilidades às mulheres, ou seja, é visto como algo pejorativo, já que sua natureza feminina não é acolhida e bem aceita sem imposição de restrições. Muitas vezes essas mulheres chegam na clínica com a visão de que “é ruim ser mulher”, se ser mulher implica em não poder realizar várias atividades, e principalmente, em ter que ter cuidado para não engravidar – uma responsabilidade e acuamento já jogado de maneira coercitiva numa fase transitória da infância para a adolescência, parece mesmo que essas pessoas foram jogadas numa encruzilhada simplesmente pelo fato de serem mulheres.
Aí fica mais claro o que quero dizer com uma cultura que necessita de evolução, já que as pulsões da natureza feminina existem e são inexoráveis à própria existência, mas que a sociedade as recebe de maneira restritiva ou mesmo pejorativa, somente colocando empecilhos em sua fluidez, onde, na realidade, poderia receber essa existência com celebração, reconhecendo a importância das contribuições advindas das mulheres e da natureza feminina. Os relatos do modo como a família lida com a primeira menstruação é sempre muito significativo também, sempre tangenciando esse alerta, ou a fofoca, de espalhar a notícia de algo tão singelo e delicado de se lidar, psicologicamente falando. Uma leitura diagnóstica dessas não permeará as problematizações da medicina com relação à essa síndrome ou de outras disfunções orgânicas, o método de intervenção é sempre esse, de suplementar sinteticamente o que o organismo não produz, portanto nunca atingirá o cerne e origem dos problemas fisiológicos.