ANO NOVO, DESEJO VELHO

Ano novo, desejo velho

Todos reagem ao ano novo, ao ciclo novo, a essa transição. Mesmo os que preferem passar a véspera sem nada especial que a torne diferente de qualquer outro dia, mesmo quem prefere dormir mais cedo para não ver a transição. Todos reagem ao ano novo, e dizer que não é afetado por ele é no mínimo ingênuo, e se analisado a fundo veremos que não é incomum se tratar de uma defesa contra algum tipo de ressentimento. O ano novo suscita emoções variadas e controversas, desejo de mudança, promessas e fé de um lado, frustração, arrependimento e até um pouco de culpa do outro.

As promessas

As promessas são renovadas, e podem ser as mesmas dos últimos anos, promessas vazias e não realizadas, que escondem alguma culpa ou vergonha. Há promessas por resultados e promessas por atividades. Prometer resultados já sabemos que é a forma mais perigosa em se tratando de frustração. Não se pode prometer perder peso, ou ganhar dinheiro, tendo em vista diferenças no metabolismo, atividade física e boa alimentação não garantem perda de peso, e trabalhar com extrema dedicação não garante lucros ou dividendos. Promessas por atividades sim podem ser cumpridas, comer melhor, se exercitar, trabalhar e estudar mais, e até começar uma análise no ano seguinte sem interrompê-la. Mas mesmo a promessa de FAZER algo pode não ser cumprida, “na hora do vamos ver” a deliberação pode tomar caminhos diferentes do prometido.

A grande questão sobre as promessas que não são seguidas e honradas de alguma forma é sobre o alinhamento entre o querer e o desejo. Em outras palavras: você quer o que você deseja? Querer o que realmente deseja, bancar esse desejo envolve um grande risco para o próprio Eu. O desejo é algo profundo e muitas vezes um desejo vil, sórdido e proibido, daí o risco de querer realizar esse desejo, que envolve o risco de frustração, julgamento. E talvez o maior risco do desejo seja conseguir realiza-lo. Afinal, realizar um desejo pode abrir espaço para outros desejos ainda mais violentos ou aterradores, ou ainda pode mostrar que aquela satisfação antecipada com grande ansiedade não é tão satisfatória assim, o que traria um enorme vazio para a vida.

Os desejos e quereres

Estamos nos equilibrando entre o querer o que se deseja, ou não desejar nada. Querer o que deseja envolve o risco de se frustrar com isso, seja pela satisfação não ser como imaginada, ou pela satisfação evocar ainda novos desejos mais desafiadores e mais passíveis de nos frustrar. Não querer o que se deseja é uma ótima forma de não se frustrar, de guardar a sete chaves o que se tem de mais precioso, porém isso também priva de muita satisfação.

Essas duas formas aqui mencionadas de se lidar com o desejo são as formas mais características das neuroses como descritas por Freud. Na neurose obsessiva o sujeito esconde seu desejo, esconde o que tem de mais precioso, pois o medo de perder e de se frustrar com isso é enorme. O obsessivo acaba escondendo isso que é o mais valioso de forma a impossibilitar que possa gozar do que tem e também castrar a realização do seu próprio desejo, pois o desejo jaz escondido. Já na neurose histérica a pessoa vive a insatisfação, constantemente desejando algo outro, sendo eternamente insatisfeita com tudo que consegue obter.

Querer o que deseja, de fato envolve uma aposta, e como toda aposta, envolve um risco de perda, de fracasso e grande frustração. É preciso coragem para expor as próprias preferências, que muitas vezes podem tender ao ridículo ou fazerem do sujeito objeto de chacota parente os pares. Toda declaração de amor sofre com a possibilidade de rejeição, e todo desejo expresso sofre com a possibilidade, mesmo que ínfima, de julgamento moral. Desejar requer coragem, e bancar as consequências de querer de acordo com o desejo não é uma tarefa fácil. Desejos reprimidos facilmente tomam válvulas de escape disfuncionais, como é o caso de adúlteros envergonhados dos seus fetiches, que talvez se achem mais capazes de lidar com o julgamento moral da própria traição do que com o julgamento moral das práticas sexuais que permeiam suas fantasias.

            Talvez uma promessa pro ano novo que seja mais sincera e até mais psicanalítica seja prometer querer de acordo com o desejo, prometer bancar esse desejo, ou mesmo SUPORTAR o desejo. O desejo pode sim ser muito pesado e por isso difícil de sustentar durante a busca. Prometer querer o que deseja é prometer ser você mesmo, e – se é que é possível dizer assim – é prometer viver um pouco mais de acordo com o próprio Eu, e não tanto de acordo com os outros. Se não for possível se considerar propriamente a parte dos outros, pelo menos conseguir viver de forma que não se sinta coagido pelo outros a ser o que não gostaria de ser. A sensação de realização do desejo é essa, sem pressão e sem se esconder. Ela só vem com a aposta no desejo, com o risco da frustração, e a surpresa está aí, onde tudo pode ser previsível, mas cada reacontecimento é novo.

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