Reflexões acerca da morte e do câncer

Reflexões acerca da morte e do câncer

O homem é um ser essencialmente relacional, formador de vínculos e constante usuário de diversos tipos de comunicação para transmitir mensagens. No decorrer de uma trajetória existencial, é possível observar que indivíduos criam laços breves ou duradouros, sendo iniciados através de um aceno, um “olá”, um elogio e até mesmo um pedido de desculpas depois de um esbarrão inesperado na rua. Assim, comunicar-se é essencial na construção e manutenção das relações. Porém não é sempre que a relação entre emissor e receptor ocorre de maneira eficiente, havendo mensagens que ficam em segundo plano, nas entrelinhas ou em um lugar obscuro de difícil acesso, como é o caso de alguns assuntos na sociedade que, por medo ou para manter uma proteção imaginária, tornaram-se tabus.

Nesse cenário, vemos a morte e o câncer como alguns dos protagonistas. É comum que metáforas e eufemismos sejam utilizados ao se referir a estes temas, principalmente no trato com crianças ou diante da dificuldade de lidar com os mesmos, dada a mobilização emocional que tendem a causar. Porém, tal realidade nem sempre foi assim. Segundo Rodrigues (1983), antes do século XVII a morte não representava o temor com o qual hoje é vista, visto que se configurava enquanto um evento cotidiano, fazendo parte do existir. Assim, observando a realidade atual e os cuidados constantes com saúde, a morte se tornou menos frequente e um evento a ser evitado a todo custo, tanto no corpo quanto no discurso. Porém, diante do aparecimento de um câncer, o tema da morte inevitavelmente surge.

O câncer e a morte

Câncer e morte ainda são palavras entrelaçadas em seus sentidos para quem as ouve. Não raro é ver faces pesarosas ao saber de um diagnóstico de câncer, não necessitando de maiores informações sobre o caso para expressar seus sentimentos de dor. Sontag (1978, p. 7) pontua que “o câncer é (ou é tido como) uma sentença de morte”, o que nos leva a refletir sobre como repercute a indissociação destes dois termos nas vivências e, para além disso, qual as razões de tal associação inevitável.

O câncer, apesar de todas as tecnologias e avanços científicos, ainda é um dos maiores mistérios que ameaça a vida e, dessa forma, amedronta também – ou até primordialmente – pelo seu caráter desconhecido. Conforme a autora supracitada, qualquer doença que se apresente dessa maneira é temida mais intensamente considerada moralmente contagiosa, sendo “o contato com uma pessoa acometida por doença tida como misteriosa malignidade configura-se inevitavelmente como uma transgressão ou, pior, como a violação de um tabu” (SONTAG, p.5).

Naquilo que não é dito, escondido, posto nas entrelinhas, o câncer coloca uma lente de aumento e, como a morte sempre será uma possibilidade diante da vida, também torna-se mais evidente. Porém, além de evidente, agrega-se uma certeza nos discursos acerca de acometidos pelo câncer. Apesar da consciência da mortalidade ser inerente à vida, esta é uma esfera indesejada ao ser humano, então morte e câncer se tornam tabus também como uma forma de defesa diante de uma possibilidade de finitude, entrando no campo dos não-ditos e das mensagens obscuras.

Nesse sentido, Sontag (1978) coloca que a morte é algo obsceno, uma afronta, aquilo que não é passível de controle para aqueles que não vivem de filosofias religiosas ou considerando a morte enquanto um fato natural. Assim, ela só pode ser negada. E, seguindo esta reflexão, nota-se que as ideias sobre o câncer são similares às da morte em vários sentidos, talvez por isso estejam tão atreladas nos discursos. Siddharth (2010) soma ao pontuar que “o câncer não é um campo de concentração, mas partilha com ele a característica da aniquilação: nega a possibilidade de vida fora e além de si mesmo” (p. 352).

O medo do misterioso

Diante do medo do misterioso, o homem busca controle. Controle daquilo que é inesperado, desconhecido, estranho e, para tanto, o discurso baseado no caráter psicológico de doenças é utilizado como uma segurança diante da incapacidade de colocar em palavras a sua própria insegurança, sendo mais válido explicar a doença que falar sobre suas reações temerosas e frágeis decorrentes dela. Sobre a forma com a qual se compreende o câncer, Sontag (1978) aponta que “há uma predileção particularmente moderna por explicações psicológicas da doença, como de tudo mais. Colocar as coisas no terreno psicológico parece garantir o controle sobre experiências e fatos (como uma doença grave), sobre os quais as pessoas, na verdade, têm pouco ou nenhum controle” (p. 36).

Residindo neste cenário de expressões de sentimentos e ideias metafóricos, a fantasia e a imaginação têm solo fértil, o que pode ser um caminho no relacionamento com a morte ou o câncer, assim como pode ser mais um fator ansiogênico nesse percurso.

A morte tomou conta da imaginação dos meus pacientes naquele mês, e minha tarefa era recuperá-la das garras dela. É uma tarefa impossível de descrever, uma operação muito mais delicada e complexa do que a administração de um remédio ou a realização de uma cirurgia. Era fácil reapoderar-se da imaginação com falsas promessas; muito mais difícil era fazê-lo com verdades. O que se exigia era um ato de medições requintadas e repetidas, para encher e esvaziar de oxigênio um respirador psicológico. Com excesso (…) ela poderia inchar-se de ilusão. Com insuficiência, poderia asfixiar, totalmente, a esperança. (SIDDHARTH, p.275)

Sontag (1978) cita que falsas esperanças e terrores gratuitos são disseminados por estatísticas cruéis e divulgados para o público em geral. E cabe aqui pontuar que tal forma de comunicação também são traços da cultura e de como sentimentos, emoções e ideias são tratados. Assim, falar sobre câncer e morte se torna uma missão difícil diante “das grandes insuficiências desta cultura, da nossa atitude superficial diante da morte, da nossa ansiedade com os sentimentos, das nossas reações temerárias e levianas aos nossos verdadeiros “problemas de crescimento” (SONTAG, p. 54)

Portanto, vivenciar as realidades sofredoras do câncer e da morte é, antes de tudo, alarmante. Os meios de comunicação enaltecem os dissabores que alimentam os temores, gerando afastamento do assunto como forma de se precaver, o que fortalece o caráter de tabu. Vale ressaltar que também há alternativas em contraponto a esse movimento, como é o caso de grupos de apoio a pacientes ou reuniões de reflexão. Ainda que haja uma dificuldade em lidar com os assuntos, observa-se maior interesse em retirar esse véu que os mascara, mas que também deve-se ter em conta que serve como proteção psíquica a ser respeitada.

REFERÊNCIAS

RODRIGUES, J. C. Um outro estilo de morrer. In: RODRIGUES, J. C. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. p. 185-201.

SIDDHARTH, M. O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. 2010.

SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

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